Autor: Luís do Nascimento Lopes (Professor, Vice-presidente da FENEI/SINDEP)
Apesar dos múltiplos avisos que deveriam ter feito soar os alarmes não apenas da comunidade científica (que na generalidade dos casos ficou a bradar no deserto), mas igualmente e sobretudo dos poderes políticos e económicos a nível global, esta pandemia aparentemente apanhou-nos a todos desprevenidos, o que não deixa de ser estranho já que o cenário é, há mais de um século, um dos temas mais glosados por exemplo pelos escritores de ficção científica.
Infelizmente neste caso a realidade superou a ficção.
Rapidamente se percebeu que pouco se percebia sobre o agente em si. A admissão de que não havia um tratamento verdadeiramente eficaz contra o vírus e de que apenas a vacinação, quando fosse inventada, testada, comprovada e aplicada em números globalmente significativos, poderia oferecer um grau satisfatório de protecção, rapidamente nos transportou para um campo bem conhecido de todos quantos trabalhamos na área da prevenção de riscos e da segurança ocupacional: o da segurança comportamental.
Após um período (inexplicável e irresponsavelmente longo) de mensagens contraditórias quanto à probabilidade do vírus nos atingir, à sua virulência e gravidade, percebeu-se que enquanto os
cientistas corriam contra o tempo para a descoberta da vacina, estava muito na mão de todos e de cada um de nós adoptar comportamentos que dificultassem e atrasassem a propagação do vírus.
Os EPIs, como as máscaras e as luvas, entraram no nosso quotidiano, passando a integrar o nosso vestuário como peças imprescindíveis. Mas também os nossos comportamentos mudaram. Desde logo nos cuidados individuais. A lavagem e desinfecção das mãos passou a ocupar-nos muito mais tempo e a ser feita com muito mais cuidado e minúcia, não deixando de ser curioso verificar como em pleno século XXI foi preciso divulgar vídeos e panfletos a explicar a uma Humanidade que envia sondas espaciais para explorar os confins do Universo, como se lavam as mãos.
De repente, hábitos que conhecíamos de outras latitudes e que considerávamos, no mínimo, bizarros, como o uso de máscara na rua e o deixar à porta de casa o calçado que utilizávamos no exterior, passaram a integrar o nosso quotidiano.
E há que realçar que se trata de hábitos muito positivos e que não explicam na totalidade mas ajudam a explicar que este ano a incidência da gripe sazonal tenha sido anormalmente baixa. São hábitos preventivos com os quais todos ganhamos e que esperamos que tenham vindo para ficar. Mas desde muito cedo se percebeu que, para além da vertente de saúde pública, havia que enfrentar as consequências económicas da pandemia. As economias não podiam colapsar. A produção e os serviços não podiam parar, sob pena de a humanidade não morrer do vírus mas morrer à fome. Havia que continuar a trabalhar.
Mas o trabalho teria de sofrer alterações de fundo. Teria, enquanto não existissem soluções preventivas eficazes, de ser, na medida do possível, transferido dos locais tradicionais de trabalho para os domicílios.
E aí alguém se lembrou de que já existia uma coisa chamada “teletrabalho”, aliás regulada no Código do Trabalho nacional e objecto de vários acordos europeus no âmbito do diálogo social europeu.
E nessa altura assistiu-se a um processo absolutamente perverso. Encarou-se o teletrabalho na sua única dimensão de “trabalho no domicílio”, sem quaisquer regras ou ao arrepio das existentes. De repente houve poderes que perceberam que pôr as pessoas a trabalhar a partir de casa, com os seus próprios meios, assumindo elas próprias os custos associados à produção, sem um horário nem um posto de trabalho claramente definidos, permitia maiores lucros e rapidamente muitos entenderam que o teletrabalho podia ser sinónimo de “escravatura ao domicílio”. Mas perceberam também algo de ainda mais grave: a descaracterização do posto de trabalho limitava seriamente a actividade dos poderes inspectivos e fiscalizadores da legislação laboral e das condições de trabalho. Há que assumir todas as limitações às competências dos inspectores da ACT para entrarem num domicílio para fiscalizar “um posto de trabalho”. O que já antes era difícil, tornou-se impossível.
E a partir daí assistiu-se a um verdadeiro retrocesso civilizacional. Conquistas que considerávamos decisivas para o mundo do trabalho, para o homem enquanto ser social, para o bem-estar e felicidade dos trabalhadores, para o funcionamento das empresas enquanto microcosmos, para o respeito e defesa do ambiente, ruíram como dominós.
Onde antes da pandemia se discutia que medidas adoptar para conciliar a vida profissional com a vida familiar e a vida pessoal, agora assiste-se à tentativa de impor a ideia de que só importa a vida profissional e de que é ela que deve reger e subordinar todas as outras.
O local de trabalho, polo de encontro e de cooperação entre os seres humanos, de convívio, de respeito e de potenciação das diferenças, instalou-se e domina agora o domicílio, onde até agora imperava a família, esse núcleo duro e alicerce da nossa sociedade, cujos interesses passam a conflituar com os do trabalho.
O isolamento dos outros cobra uma factura terrível. O homem, talvez o animal com menos características físicas protectoras ”de origem”, só sobreviveu e prosperou em grupo, em sociedade. Hoje, a interpretação que muitos querem dar ao necessário “distanciamento social”, vai muito para além do aconselhável e aproxima-se perigosamente do “distanciamento do social”. E se passarmos essa fronteira estamos condenados enquanto espécie. A passagem do homem de ser gregário e comunitário para a de predador solitário não é um mero cenário de ficção científica. Mas a acontecer, coloca-nos no mesmo trilho dos restantes predadores solitários: o da extinção.
O individualismo impera e é encorajado por movimentos que na aparência defendem a liberdade individual, por exemplo recusando o uso de máscara ou promovendo ajuntamentos irresponsáveis e perigosos, mas que na realidade pretendem substituir essa liberdade individual pela irresponsabilidade social, pelo desprezo pelos outros, esquecendo que numa sociedade a minha liberdade individual termina onde começa a liberdade dos outros e os interesses da maioria, nomeadamente dos mais frágeis, deve prevalecer sobre os interesses individuais.
Está na mão de todos e de cada um de nós não aceitarmos a ideia de que há uma “nova normalidade”, Há, isso sim, uma “anormalidade” forçada e compreensível à luz da pandemia. E a vitória
sobre a pandemia só será completa se vencermos também essa anormal “nova normalidade” e voltarmos ao caminho do progresso social, da busca do bem-estar e felicidade colectivas, numa sociedade onde todos dependemos de todos e onde todos somos responsáveis por todos.