Tenho observado ao longo dos últimos anos, um gradual, e quase que formalmente aceite, distanciamento entre a realidade e a virtualidade dos números “oficiais” de acidentes de trabalho (AT), até porque, ab initio havia uma certa convergência na própria definição de acidente de trabalho, com a contabilização efetiva do mesmo (pese embora, dimensionada apenas à realidade de cada empresa/país. Mas era uma informação, ainda que parca, pelo menos comummente aceite pelas partes), mas que doravante, parece que não é bem assim. Se não vejamos, e apenas reportando-me à realidade nacional e europeia.
Para um Técnico (Superior) de Segurança e Higiene do Trabalho – T(S)SHT, qualquer incidente (acidente ou quase-acidente) ocorrido no local de trabalho, deve, por uma questão de aferição do motivo/causa da ocorrência, ser investigado, de forma a saber-se o que terá estado na origem do fenómeno, cruzando esse mesmo retorno, com a avaliação de riscos prévia da atividade/tarefa, de modo a ter, ou não, necessidade de intervir na avaliação de riscos inicial, com o intuito de eliminar ou mitigar futuras ocorrências.
Esta pequena abordagem vem no sentido de que, à luz das Estatísticas Europeias (EE), somente acidentes de trabalho com baixa superior a 3 dias são contabilizados como AT. Por outro lado, sempre que um trabalhador entra de baixa, em consequência de um AT, a empresa participa à seguradora em função do atestado/baixa médica entretanto recebido, seja por apenas um dia (raramente) ou até três dias (frequentemente). Caso seja por um período superior, já entra, digamos nas estatísticas ditas “oficiais” para a União Europeia. Só por aqui vemos que, 90% das ocorrências que são contabilizados e investigadas pelos T(S)SHT, não o são ao nível estatístico europeu, uma vez que as mesmas não ultrapassam os 2 ou 3 dias de baixa, para não referir os AT* que ocorrem sem baixa, pelo menos declarada.
Para os T(S)SHT, um acidente/quase-acidente de trabalho deve ser investigado, logo contabilizado, seja como acidente, seja como quase-acidente. Confrontando com a Legislação (Lei 98/2009, de 4 de setembro que “Regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do artigo 284.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro”, entramos um pouco em dissonância, já que a mesma apenas contempla e define AT como “(…) aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte (…)”. Esclareça-se por exemplo que, para a SHT, um colaborador que tropece/embata com a cabeça e/ou um membro (superior ou inferior), sofrendo qualquer tipo de dor, num local onde supostamente não deveria ter acontecido mas que, não resultou lesão, perturbação funcional ao ponto de sentir necessidade de ir a um posto médico/hospital e ter baixa, deve ser investigado, de forma a saber-se o quê/como aconteceu e, se necessário, verificar que medidas corretivas deverão ser implementadas. Isto serve igualmente para o trabalhador que estava num escadote e que escorregou, caindo no chão sem lesões. Deve ser verificado pela SHT, por exemplo, se foram cumpridos os procedimentos dos três pontos fixos de apoio (dois pés e uma mão ou duas mãos e um pé), ou se o escadote estava ou não bem posicionado, ou se o referido colaborador tinha formação e informação sobre escadotes, ou se o escadote esta em condições adequadas de utilização e, por aí adiante.
Por outro lado, para a ACT apenas interessa e intervém nas situações de maior gravidade (feridos graves e/ou mortes), ficando digamos um vazio “oficial” do número efetivo de ocorrências, ainda que em sede de Relatório Único Anexo D, exista um campo para mencionar número de acidentes até 1 de baixa, de 1 a 3 dias, mas que em termos de contabilização oficial, somente são utilizados para efeitos estatísticos os AT com baixa superior a 3 dias. Perante estes factos, apetece quase dizer então que, o “fenómeno” (vulgo, AT com baixa inferior a 3 dias) fica ao critério interno de cada empresa e/ou estado, desde que não seja superior a 3 dias, ou mesmo, desde que não haja qualquer dia de baixa.
A convergência deu lugar à divergência, ou por outras palavras, deu lugar a um rácio contabilístico em que “apenas” AT, com baixa superior a 3 dias, conta para efeitos estatísticos. Este método de contabilização faz lembrar o iceberg dos custos diretos e indiretos, em que podemos alocar a proporção visível desse mesmo iceberg, aos acidentes contabilizados pelas Estatísticas Europeias, e a parte invisível do mencionado iceberg, aos restantes acidentes e quase-acidentes, pois como é sabido, estes últimos representam a esmagadora maioria de número de AT. Podemos então aferir que o número real de AT depende da realidade para que o mesmo serve, ou seja:
- Para a SHT – todos interessam.
- Para a EU – apenas se tiverem baixa superior a 3 dias.
- Para a ACT – apenas se tiver grave consequência (ferido grave ou morte).
- Para as seguradoras – desde que comunicadas atempadamente e devidamente acompanhadas pela baixa médica.
Sabendo-se que o conhecimento traz, per si, uma especificidade sobre algo descoberto de maior complexidade, onde a máxima “só sei que nada sei” faz todo o sentido, não é menos verdade que devemos caminhar para a essa saudável “ignorância” via sapiência e conhecimento e não nos deixarmos conquistar pela “ignorância” via desconhecimento. Acresce-se somente que, em função dessa complexidade, devemos efetivamente especializarmo-nos numa matéria e trocar saberes com os pares, de forma a obtermos maior amplitude e visão sobre o que nos interessa estudar, saber e investigar.
Mormente toda a informação supra mencionada, não se pretende criar conflito com o título em epígrafe ou ser-se pretensioso, mas tão só questionar para a eventual separação das realidades, no que aos AT disser respeito, por uma questão de esclarecimento para quem não está familiarizado com a problemática, ou mesmo para quem queira participar, já que para a SHT, seja na vertente de investigação de incidentes (acidentes ou quase-acidentes), seja nas estatísticas, seja nas análises, inspeções de segurança, seja para que efeito for, os AT são todos contabilizados e investigados, para se perceber “o quê” e “como” aconteceu e, desta forma atuar em conformidade com a avaliação de riscos e sua aceitabilidade, já que a prevenção pode ter falhado em algum aspeto, que obrigue doravante a adotar medidas corretivas.
Por outro lado, e igualmente importante, existem outras variáveis que grosso modo não são mensuráveis em questões de contabilização estatística, mas que para o T(S)SHT faz todo o sentido e diferença, como por exemplo os fatores psicossociais, as perceções cognitivas de cada colaborador, a psicologia diferencial e o comportamento seguro (aprendido e apreendido). Sabe-se que, face a um perigo, a perceção individual de risco é diferente de indivíduo para indivíduo, assim como o tipo de reação. Outra situação de perigo é a condicionante que por ventura o trabalhador já traz de casa que pode condicionar, não só a sua produtividade, mas sobretudo a sua própria segurança e de quem interage com o mesmo. Estar somente com o corpo presente mas com a cabeça algures (preocupado com situações extra laborais), pode fazer a diferença entre o ato seguro e o ato inseguro, nomeadamente em funções de risco elevado, pode mesmo acabar por ser decisivo. Sejam fatores organizacionais, sejam individuais, sejam contextuais, são condições e variáveis que podem não só ajudar a prevenir na identificação de perigos e avaliação de riscos, como na própria investigação de acidentes. É uma problemática que convém debater com as partes interessadas, de forma a conseguir-se estabelecer um código coerente e abrangente.